“Leva esse Felinni também. Ó, os quatro por dez reais”. Eu já tinha um Almodóvar e dois John Hughes na mão. Com o Felinni, cada DVD sairia por meros R$ 2,50. Mas, pensando bem… para quê? Era o último dia da locadora do bairro. E era a última locadora no bairro. Estava vendendo tudo, o acervo, os móveis, as prateleiras. O dono explicava a mais um cliente desconsolado. “É. Não dá mais. As pessoas não alugam mais. Agora elas ligam a tevê e botam o que querem ver. Now. Netflix. Vai ser assim agora”. O cliente comentou que, com a internet, nem comprava mais CDs. Aproveitei: “E livro hein? Será que vai ser assim também?” O dono deu de ombros. “É, daqui a pouco vai ser assim também com os livros”. Outra cliente concordou com um muxoxo. “É, até com os livros”.
O que pressentem os clientes na locadora é o que se sabe no Vale do Silício. Os livros, ou melhor, a literatura digital, caminham para um sistema de assinaturas. Os e-books tentaram se comportar como os livros tal qual conhecemos: mercadorias. Porém o lado “e” foi mais forte que o lado “book”, e ele acabou por seguir sua natureza, a internet, repudiando restrições de quantidade, acesso e (quase) de custo. O digital já permitiu que a música e o audiovisual passassem da fase sólida para a gasosa, isto é, os bens culturais deixaram de ser mercadorias que o cliente busca e leva para casa, e tornaram-se um serviço em permanente disposição, onde e quando e o quê o cliente desejar. No audio temos o Spotify. No visual temos a Netflix.
Nos últimos meses, pipocaram os candidatos a “Netflix” dos livros, lá fora e no Brasil. Uma boa arrancada, mas sem direção clara. O que representa o sistema de assinatura de livros — onde o cliente lê o quê e o quanto quiser por uma tarifa mensal — para leitores, editores e autores? Como isso “funciona” financeiramente — se é que funciona?
Os modelos de negócio ainda estão calcados nos livros-mercadoria e equiparam a web às livrarias e bibliotecas físicas. As “distribuidoras” dizem a editores que cada “leitura” equivalerá à receita da venda de um ebook. Alguns editores exigem que, enquanto um livro estiver “emprestado” a um assinante, não poderá ser lido por mais ninguém. Escritores querem seus “direitos autorais” contabilizados como um percentual de cada livro “emprestado”. Todos preferem ignorar que um texto digital não é um objeto estocável, e sim um arranjo eletrônico provisório infinitamente replicável. Dão respostas de ontem para perguntas de amanhã.
A pioneira Kindle Owners Lending Library (KOLL), da Amazon, segue a metáfora da biblioteca. O assinante só pode pegar um livro por vez. Quer ler outro? Devolva o primeiro. Por U$ 72 anuais, é como se o leitor comprasse 12 ebooks por U$ 6 cada (um desconto de 40% sobre o preço médio). Cada livro “emprestado” rende ao editor como se ele tivesse sido vendido, mas somente aqueles que concordam com a exclusividade conseguem boas margens na Amazon. O autor, é de se supor, recebe seus royalties integrais a cada livro baixado.
Já com a Oyster — a mais parruda das candidatas a “Netflix dos Livros” — é para valer. Leia quantos livros você quiser ou conseguir, pagando uns U$ 10 por mês. Do lado das editoras, a Oyster promete pagar integralmente por aqueles títulos efetivamente lidos (mas não os folheados), como se tivessem sido vendidos. Em termos de plano de negócio, o modelo é o da churrascaria rodízio. Alguns clientes vão comer, literalmente, todo o lucro do processo, mas a média (dentro de uma grande amostragem) vai consumir menos do que custou a comida, gerando lucro. E, se o cardápio não varia, os custos são constantes e menores, por economia de escala. É só uma questão de manter as mesas cheias. O negócio atingirá o nirvana econômico quando contar com uma base extensa de assinantes gerando um fluxo constante de receita superior aos repasses às editoras: uma mais valia sobre o leitor pouco frequente no meio do big data. Em outras palavras: o restaurante cheio de gente que se entope com farofa antes de chegar a carne.
Voltando à Amazon e sua KOLL, há uma outra receita para editores, que dificilmente pode ser convertida em royalties para os autores — simplesmente porque é impossível atribuir a um título. As editoras que toparem exclusividade com o Kindle dividem um “Fundo Global”. Para calcular sua fatia nesse bolo — que para Março de 2014 é de R$ 2,8 milhões — divide-se a quantidade de empréstimos do catálogo da editora pelo total de empréstimos geral. Essa receita não se confunde com a receita pelo empréstimos de ebooks, que também é paga, e serve de base para o cálculo dos royalties de autores. No Brasil, a pioneira Nuvem de Livros opera de forma semelhante: as editoras recebem diretamente por cada livro “lido”, e também indiretamente, com uma participação da receita geral, calculada pela quantidade de livros em relação ao catálogo total. Nos dois casos, o recurso do bônus é uma forma de estimular editoras a embarcarem em uma modalidade radicalmente nova de comercialização. Dá para imaginar que, com o amadurecimento do mercado, esse chamariz perca atratividade.
Ainda assim, os editores estão hesitantes em entrar no Oyster, e elegeram para bois-de-piranha seus backlists, os títulos mais antigos que já não rendem muito. Algo parecido ocorre com a Netflix, com o catálogo baseado em filmes que já esgotaram a carreira no cinema e tevê. Mas a Netflix deu tão certo que já está produzindo seu conteúdo, e com sucesso. Quem sabe a Oyster, quando tiver uma base de milhões de assinantes, não terá porte para bancar livros “exclusivos” de grande apelo?
E se o sistema efetivamente vingar, o que isso representará para a indústria do livro?
No cenário do círculo vicioso, os livros serão banalizados. Aquela edição comentada traduzida do russo em quatro volumes “custa” (e “vale”) tanto quanto os sonetos do meu tio poetastro. Sem a percepção de valor inerente aos livros impressos, a literatura digital perde de vez a disputa com outras formas de entretenimento digital. Os editores venderão o estoque, a “3 por 10 real”.
Na melhor das hipóteses, temos o círculo virtuoso. O acesso instantâneo e fácil, livre das restrições de custo, vai estimular a descoberta e a formação de público leitor. Uma base maior de assinantes vai gerar um fluxo constante para editoras que, com a receita básica garantida e a extinção dos custos de impressão e frete, vão poder remunerar melhor os autores. Em pé de igualdade com outros bens de consumo digitais, música e audiovisual, os livros ganham novos públicos.
O argumento para esse cenário mais promissor é que a maior parte das vendas de livros trade, como os romances, se dá por impulso. O sujeito zanza pela loja e vai com a cara do livro no balcão. O que vai determinar a venda, na livraria, é o número que aparece ao escanear o código de barras. É o preço que define se ele levará o livro ou não, o exemplo clássico de demanda elástica. Pois imagine que não há mais essa barreira. No sistema de assinatura de livros, não custa nada folhear um livro, ele parece sair “de graça”. Rompe-se o elástico. O bovarismo é regra. Se tudo der certo, teremos mais gente descobrindo livros, maior público leitor, maior receita.
Seja qual for o futuro do livro e de seu indústria, assistir de camarote às destruições criativas que levam o mercado adiante não é uma opção. É a energia, cupidez e insensatez das startups tecnológicas que abrem novos caminhos, justamente porque são eles que não sabem o que é impossível. Infelizmente, os desafios comerciais são por vezes maiores que os desafios tecnológicos, posto que os mercados têm códigos mais complexos, como a cultura e o hábito. Eis o dilema do inovador: ser o melhor a atender ao mercado em suas demandas atuais, ou ser o primeiro a atender suas demandas futuras.
Ou continuar a ser a melhor locadora do bairro.
Publicado originalmente por Julio Silveira no Publish News