Um especialista acredita que as lojas desaparecerão no futuro. Mas elas já começaram a se reinventar
Uma das grandes vantagens de ser jornalista é poder falar com especialistas em qualquer assunto. Não importa qual área do conhecimento te interessa: há sempre dezenas de americanos que dedicam sua vida àquilo e são capazes responder a qualquer pergunta. Nas horas vagas, preveem o futuro. Falar com eles costuma ser uma experiência enriquecedora, mas suas más notícias sobre os anos vindouros podem aborrecer qualquer um.
A previsão mais perturbadora que ouvi de um entrevistado surgiu numa conversa sobre livros digitais. O entrevistado era o americano Bob Stein, presidente do Instituto para o Futuro do Livro. (Sim, podemos dormir tranquilos: existe um instituto dedicado a isso.) Entre uma pergunta e outra sobre os diferentes formatos de e-books, suas vantagens e desvantagens, Stein comentou casualmente que as livrarias iriam acabar. Com o sucesso das vendas de livros digitais e a adesão dos consumidores ao comércio eletrônico, elas tinham se tornado inúteis.
Ao ouvir a previsão, engasguei. Stein percebeu do outro lado da linha e hesitou por um instante. Era um momento inusitado. Repórteres costumam ficar felizes quando um entrevistado diz uma frase de impacto. Ele logo percebeu que esse não era o meu caso, e começou um esforço desajeitado para me consolar. Reelaborou sua opinião de forma mais otimista, como se tentasse convencer uma criança de que fadas existem, ou de que a mãe do Bambi não estava morta. A frase publicada na minha reportagem acabou sendo esta: “As livrarias não desaparecerão, mas deixarão de ser apenas pontos de venda.” Eu não estava pronto para acreditar na primeira frase, nem convencido o suficiente para dividi-la com os leitores.
Um futuro sombrio
Por muito tempo temi que a primeira previsão de Stein estivesse certa. Como costuma ocorrer com os especialistas, ele tinha os fatos ao seu favor. A Borders, uma das maiores cadeias de livrarias do mundo, faliu em 2011 devido à concorrência com a Amazon e outros sites. No Reino Unido, 18% das livrarias independentes fecharam. Seus donos culpam o comércio eletrônico e os livros digitais.
A preocupação com o futuro das livrarias é tão grande que o autor de suspense Stephen King, um dos pioneiros do e-book, anunciou na semana passada que vai adiar o lançamento virtual de seu novo livro, Joyland. “Não tenho planos para uma versão digital”, disse King ao Wall Street Journal. “Talvez em algum momento, mas enquanto isso as pessoas podem se chacoalhar e ir a uma livraria de verdade, em vez de uma digital.”
O plano de King tem tudo para dar errado. Se alguém quiser comprar Joyland e não encontrar uma versão digital, o mais provável é que encomende o livro físico pela internet, com meia dúzia de cliques, sem pisar numa livraria. Alguns podem simplesmente desistir de comprar o livro. Ou pirateá-lo e colocá-lo a disposição de outros leitores gratuitamente – o pior dos mundos para o autor, para as editoras e para as lojas. Se dependermos de decisões como essa, o futuro das livrarias é sombrio como um romance de Stephen King.
A vida entre as estantes
Com essa preocupação na cabeça, decidi fazer uma visita à minha livraria favorita na semana passada. Quem sabe por quanto tempo ela resistiria?
Para minha surpresa, ela estava lotada. Na entrada, havia uma agenda de eventos e convites para cursos e palestras. Alguns adolescentes conversavam sobre livros nos corredores. Leitores sentavam-se no chão ou em poltronas com seus livros e revistas. Outros tomavam café enquanto liam em mesas. Livreiros atendiam, pacientemente, a pedidos nebulosos dos fregueses. (“Não sei qual é o autor nem qual é a editora, mas a capa é verde e ele estava na vitrine no mês passado.”) Um homem tímido arriscava uma conversa com uma garota desacompanhada. As grandes livrarias, diz a lenda, são bons lugares para paquerar. Seus frequentadores têm interesses em comum. O assunto para a primeira conversa pode estar nas mãos de um deles, ou na prateleira ao lado. Os amantes de livros tendem a se atrair. Um flerte no corredor da livraria pode ser um prólogo para juntar as escovas de dentes (e as estantes) nos capítulos seguintes.
As livrarias brasileiras cresceram num vazio deixado pela falta de boas bibliotecas e centros culturais. Transformaram-se em pontos de encontro, salas de leitura e espaços para eventos. Algumas têm auditórios e até teatros para acolher o público. Mesmo com todas as facilidades oferecidas pela internet, as pessoas continuam saindo de suas casas. As que gostam de cultura nem sempre têm boas alternativas para se divertir. E, depois que abandonamos o sofá e o cobertor, poucos lugares são tão aconchegantes quanto uma livraria.
Acompanhei, como consumidor, a transformação das lojas nos últimos 20 anos. Na minha infância, tomei algumas broncas de livreiros por ler na livraria. Se quisesse olhar um livro com mais atenção, deveria comprá-lo e levá-lo para casa. Com o nascimento das megalojas, maiores e com lugares para sentar e ler, os funcionários deixaram de ter a missão inglória de interromper as leituras dos clientes. Em contrapartida, surgiram lojas em que o livro era apenas mais um produto na vitrine, em meio a televisões, computadores e celulares. Como os eletrônicos eram mais caros, a maioria dos vendedores sabia tudo sobre eles – e nada sobre livros. Se você quisesse trocar de celular, estava no lugar certo. Se quisesse encontrar qualquer livro que não fosse o best-seller da semana, restava desbravar as prateleiras por conta própria. Passei boa parte da minha adolescência circulando sozinho por livrarias assim. Ainda há lojas desse tipo, e elas têm seu valor: uma livraria que vende televisões é melhor do que livraria nenhuma. Mas ouvi muita gente séria dizer que esse era o futuro de todas elas. Estavam errados. Ainda há espaço para lojas em que o livro é o personagem principal, e não um coadjuvante pobre.
Uma nova experiência
Quem já sabe qual livro comprar e quer começar a ler imediatamente não tem motivo para sair de casa. As compras pela internet são mais cômodas e mais baratas. Continuamos indo às livrarias por outras razões. Visitar uma delas deixou de ser uma experiência de compra e passou a ser um momento de descoberta. Sergio Herz, presidente da Livraria Cultura, definiu com perfeição a diferença entre as livrarias de papel e as virtuais: “É como ir a um restaurante em vez de pedir comida em casa”.
Transformar a livraria num ambiente cultural efervescente é o caminho para que ela deixe de ser um simples ponto de venda, como aconselhou Stein. O café, as poltronas, os cursos e os encontros com autores são convites para que o cliente se perca em meio às estantes, descubra novos livros e sucumba a promoções. Sair de uma livraria sem comprar nada é um desafio impossível para quem tem o mínimo interesse pela leitura. Já falhei nessa tarefa tantas vezes que desisti de tentar. Agora, tenho mais um motivo para não resistir aos meus impulsos de consumo. Cada livro que compro numa livraria contribui para a sobrevida de todas elas. E ajuda a provar que os especialistas agourentos estão errados.
Fonte: Danilo Venticinque | Revista Época